Cérebro muda de acordo como é usado, diz neurocientista
Quando o assunto é neuroplasticidade, não há como deixar de mencionar os estudos pioneiros conduzidos por Michael Merzenich (Michael Merzenich), professor emérito da University of California, San Francisco (UCSF). Desde os anos 1960, quando ainda predominava entre neurocientistas a ideia de que o cérebro seria um órgão estático, pré-moldado sob estrita ordenação genética, Merzenich defende que é possível, ao longo de toda a vida, criar novos circuitos e conexões neuronais em resposta a estímulos e experiências, o que resultaria em mudanças funcionais. As teorias sobre a neuroplasticidade formuladas por Merzenich e outros neurocientistas contemporâneos abriram perspectivas revolucionárias – tanto para crianças com dificuldades de aprendizado como para pessoas com lesão cerebral decorrente de trauma ou de doenças como acidente vascular cerebral (AVC). Nas décadas de 1970 e 1980, por meio de experimentos com animais, Merzenich demonstrou que os circuitos neuronais e as sinapses se modificam rapidamente de acordo com a atividade praticada. Em um dos ensaios, rearranjou os nervos na mão de um macaco e observou que as células do córtex sensorial do animal rapidamente se reorganizaram para criar um novo mapa mental daquele membro. No fim dos anos 1980, Merzenich integrou o grupo da UCSF que desenvolveu o implante coclear. Em 1996, fundou a Scientific Learning Corporation, empresa que desenvolve softwares voltados a aprimorar o aprendizado infantil com base em modelos de plasticidade cerebral. Também foi um dos fundadores, em 2004, e é atualmente cientista chefe na empresa Posit Science, que desenvolve softwares para treinamento cerebral com base nos resultados de suas pesquisas. O programa é conhecido como BrainHQ. Nos últimos anos, Merzenich tem se dedicado a verificar se a prática de exercícios intelectuais pode ajudar a remodelar as funções cerebrais, possibilitando recuperar habilidades perdidas por causa de doenças, lesões ou envelhecimento. Seus estudos já foram publicados em mais de 150 artigos científicos – muitos deles em revistas de grande impacto, como Science e Nature. Ele também recebeu diversos prêmios acadêmicos, como o Russ Prize, o Ipsen Prize e o Zülch Prize. Em 2013, Merzenich publicou o livro Soft-Wired: How the New Science of Brain Plasticity Can Change Your Life, no qual apresenta estratégias para que pessoas comuns possam assumir o controle dos processos de plasticidade cerebral e, assim, melhorar sua qualidade de vida. Merzenich esteve no Brasil no início de abril para apresentar uma palestra no 3rd BRAINN Congress, organizado pelo Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP e sediado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na ocasião, concedeu uma entrevista à Agência FAPESP na qual falou sobre como mudanças positivas e negativas podem ser direcionadas no cérebro. Leia os principais trechos a seguir.
Agência FAPESP – Como o senhor define o conceito de neuroplasticidade?
Michael Merzenich – O cérebro foi construído para mudar de acordo com as experiências vivenciadas e a forma como é usado. A esse processo contínuo chamamos de neuroplasticidade. Quando trabalhamos para aprimorar uma habilidade, ocorre uma mudança na “fiação cerebral” (nas sinapses ou conexões neuronais), ou seja, são selecionadas as conexões que dão suporte ao comportamento ou à habilidade que estamos desenvolvendo. Assim como quando exercito meu corpo obtenho uma série de benefícios e altero a regulação de uma série de processos bioquímicos, quando exercito meu cérebro altero todo o seu funcionamento, seu suprimento de sangue e de energia, bem como a força de suas operações. Portanto, não apenas melhoro uma habilidade em si, mas todo o maquinário cerebral. Quando jogo pingue-pongue pela primeira vez, sou muito desajeitado. Após um ano de prática intensa, fico muito habilidoso, consigo ver e acertar a bola com alta acurácia. Por meio de mudanças físicas e químicas incrivelmente complexas, criou-se um cérebro com esse recurso. Nosso cérebro será diferente daqui a uma semana e muito mais diferente ainda daqui a uma década. Pode ser uma mudança para frente ou para trás, ganhando ou perdendo habilidades. Depende do uso.
Agência FAPESP – O treinamento de uma habilidade favorece mudanças positivas, mas como as mudanças negativas são direcionadas?
Merzenich – Fazemos coisas ao longo da vida que degradam nossa habilidade de extrair informações úteis do mundo a nossa volta. Por exemplo: como um humano moderno, passo várias horas por dia olhando para uma tela na qual coisas importantes para mim acontecem. Tudo que está fora daquela tela é desimportante, inútil, uma distração. Estou sistematicamente treinando minha visão, estreitando meu ponto de vista, de modo que somente aquilo que está à frente de meu nariz é importante. Fazendo isso, vou perdendo progressivamente a habilidade de processar a informação visual daquilo que está ao redor. O cidadão médio em meu país, e isso foi bastante estudado por lá, já perdeu em torno de 30% do seu campo visual aos 60 anos e mais de 50% aos 80 anos. As coisas acontecem e ele não vê porque o cérebro rejeita aquele estímulo. Essa é uma das razões pelas quais os idosos sofrem mais acidentes de trânsito. Eles gradualmente vão regredindo a um campo visual mais estreito e, ao mesmo tempo, quando conseguem enxergar algo, respondem a esse estímulo de forma mais lenta.
Agência FAPESP – Mas é possível treinar uma pessoa de modo a fazê-la perder uma habilidade já adquirida, como entender a fala em outro idioma?
Merzenich – Sim. Posso treiná-la usando formas modificadas de som não articulado, que não correspondem à fala. Treino o cérebro a mudar sua capacidade de processamento de sons, de forma que esse perde a capacidade de interpretar os elementos que se modificam rapidamente no fluxo acústico formado pela estrutura fonêmica, a estrutura elementar das palavras. Essa interpretação é necessária para extrair o sentido das palavras. Assim como posso refinar essa habilidade, posso destruí-la. Posso desafiar você a fazer distinções cada vez mais acuradas do que ouve, detalhadamente, em alta velocidade. Posso treiná-la a fazer essa distinção mesmo quando a voz está baixa, ou o discurso está anormal e distorcido. Ou posso fazer o oposto e degradar essa sua habilidade. Dar-lhe um cérebro que opera somente quando as coisas ocorrem morosamente. Fazer com que não consiga mais interpretar os detalhes do som em determinadas frequências. Fizemos experimentos de treinamento não virtuoso com macacos e ratos e mostramos que isso é possível.